Prefiro calças às saias. Se eu contasse as vezes em que usei calça ou saia, o placar seria totalmente desigual. Algo como Calça 80 X Saia 7. Tenho 37 anos e digo sem hesitar que mais de setenta por cento do meu tempo de vida eu cobri as pernas com calças. De preferência, jeans.
Desde a adolescência tenho vergonha das veias azuladas e saltadas das minhas pernas. Elas apareceram cedo e já me deram aquela sensação de inadequação física que acompanha praticamente todas as mulheres. Aos 15 anos fui a um médico especialista em doenças vasculares para investigar as varizes precoces. Ele pediu um exame genético com nome difícil para saber a probabilidade que eu teria em desenvolver trombose. Provoquei um rombo no bolso dos meus pais (o exame era caríssimo!) e descobrimos que sim, as varizes azul cerúleo indicavam grande chance de trombose. Por conta disso, jamais tomei nem tomarei pílulas anticoncepcionais ou hormônios. Proibição médica para uma vida inteira.
Na escola, lá pelo segundo ano do Ensino Médio, fui de saia para a aula. Me lembro como se fosse ontem; a memória do dia como um carimbo forte na mente. Saia na altura do joelho, modelagem ampla, tecido de malha. Tobias, um garoto que se achava lindo (e era mesmo!) mas tinha mau hálito, me disse que eu não sabia sentar direito, precisava fechar as pernas. O comentário espirituoso foi feito logos após a aula de química. Vestida com saia, eu sentava de uma maneira que era possível ver minha calcinha - sem me dar conta. Na hora não tive resposta, senti um constrangimento tremendo e não me atentei para o fato óbvio de que o cara olhava, dia sim, dia não, para minhas pernas. Depois fui descobrir que o Tobias queria me dar uns beijos, mas isso é outro assunto. Eu me achava feia e pouco atraente, jamais imaginaria que o garoto popular da sala desejaria algo comigo. E se eu acatasse, exigiria que escovasse os dentes e mascasse Trident preto, aquele bem forte mesmo. No mínimo. Felizmente nos anos seguintes topei com homens melhores (alguns piores, devo confessar) do que ele.
Anos depois, quando precisei fazer minha primeira sessão de fotos para o book de atriz, levei várias mudas de roupa e, a certa altura, troquei a calça pela saia. Mais um momento de vergonha e humilhação velada: o fotógrafo me disse que eu tinha tornozelos grossos e era do tipo “gostosa”. “Você precisa explorar esse seu lado sensual nas fotos”, ele arrotou. Quis sair do estúdio correndo igual cavalo desenfreado, mas fiquei até o final, precisava entregar o tal book para a agência que me representava. Está para nascer um conjunto de fotos mais desengonçado do que aquele, acho que peguei um total de zero trabalhos com ele. Depois aprendi a me soltar na frente das câmeras e a contornar fotógrafos de segunda categoria que davam em cima das mulheres em plena sessão. Hoje, ainda bem, não passo mais por isso.
Com base no comentário do Tobias e do fotógrafo, percebo duas coisas: homens podem fazer comentários totalmente desnecessários (mulheres também, mas este não é o ponto) e eu posso ser muito tonta. Preciso mudar o tempo verbal: eu era tonta. Hoje já consigo ter respostas mais rápidas e devo isso às calças; elas me dão agilidade, escondem as veias azuladas e os tornozelos grossos que, quando quero, exibo com prazer. Não tenho mais vergonha do meu corpo, aprendi a aceitá-lo e a gostar dele. Um amigo gay do tipo sincerão uma vez me disse “você esconde seu corpo.” Não vou dizer que ele mentiu. Foi um processo longo aprender a usar saia nem neurose. No último Carnaval arranquei do fundo da gaveta uma mini-saia colorida que andava esquecida e me diverti demais! Exibi pernas, veias, calcinha, tornozelo. Exibi a sensação de gostar de si mesma, a coisa mais bonita de se ver. Sim, a frase ficou piegas, eu sei.
Que cada um use o que quiser. Calça, saia, uma meia de cada cor, glitter nos olhos, nos mamilos, nas unhas, cachecol com estampa de unicórnio e extraterrestre (vi no bairro da Liberdade há poucos dias!). Camiseta de time de futebol, tamanco verde neon, cropped, chapéu Panamá, calça legging sem calcinha, sutiã aromatizado. Que cada um vista o que faz bem; e se quiser roubar essa frase para o slogan de uma loja de roupas, fique à vontade - mas saiba que ele é um pouco tosco, como o comentário do Tobias e do fotógrafo.
Baguncinha de links
Devorei o dossiê Elena Ferrante da revista Cult e gostei bastante. Li na versão impressa (fazia meses que não comprava uma revista), e vi que dá para ler virtualmente também aqui.
Fiz um post sobre o maravilhoso livro A teoria da bolsa da ficção, da Ursula K. Le Guin, aqui. Precisamos de menos histórias de lança e mais histórias de cestos.
Vocês conhecem o ótimo site Mulher no Cinema? Sempre encontro indicações de bons filmes dirigidos por mulheres para ver nos streamings, a cada mês.
PS: minha ideia otimista era fazer uma newsletter semanal. Porém, contudo, todavia… Decidi fazê-la quinzenalmente, acreditando que conseguirei ter mais regularidade e qualidade. 🍀Torçam por mim e obrigada pela leitura, sempre.
Amo sua escrita!!!
Gostei muito de sua crônica. Como é libertador exibir/mostrar aquilo que desejamos sob os olhares enviesados. Poucas vezes tive essa coragem... entretanto é um exercício necessário.