“Mãe, qual é o dia do homem?”. Essa foi a pergunta que meu filho, R., fez no último 8 de março, Dia Internacional da Mulher. Eu respondi que os homens não precisam de um dia comemorativo, porque o mundo é mais fácil para eles. E o Dia Internacional das Mulheres serve para nos lembrar de todas as coisas que as mulheres precisaram lutar para conseguir. “Elas não podiam trabalhar nem ter seu próprio dinheiro, por exemplo.” Ele tem oito anos - fará nove em Abril - e ouviu minha resposta com olhos curiosos.
Justamente hoje, no dia em que escrevo este texto, aconteceu algo surpreendente. R. me disse o seguinte: “eu gosto de uma menina mas não vou contar pra ninguém, nem pra você, por que não confio.” Eu perguntei por que ele não confiava em mim. Ele começou a chorar. “Depois do que a M. fez, não confio nem em você, nem no papai, nem na vovó nem em ninguém.” Fui pega de surpresa tanto pelo choro quanto pela força da resposta. Não confiar em ninguém?! Como assim?! Então ele narrou tudo: recentemente disse para uma amiga da sala - aqui a chamarei de M.- que ele gostava de uma menina do quarto ano - ele está no terceiro. E M., pelo que entendi, contou para várias pessoas da sala deles.
Ele se sentiu exposto e envergonhado. O fato dele ter chorado me mostrou que ele recebeu uma dura lição. Obviamente, fiquei com o coração apertado. (PS: Acho que crianças de oito anos devem brincar e eu não estimulo nada relativo a namoro ou gostar de fulana ou sicrana; faço questão de dizer isso aqui).
Por que estou contando essa história? Por que meninos podem ser profundamente sensíveis. E o mundo os devora, assim como faz com as garotas. O mundo é mais difícil para as mulheres - a ponto de precisarmos de um Dia Internacional das Mulheres - e, ao mesmo tempo, massacra os meninos. Essas duas ideias são igualmente verdadeiras e isso torna o problema infinitamente complexo.
Um dos méritos da série Adolescência, da Netflix, foi ter conseguido expôr o buraco em que nos metemos como sociedade. O terceiro episódio é especialmente bem construído e devastador. Como aquele meninos de olhos doces foi capaz de matar uma colega de escola? Ele não é um psicopata frio, como o personagem Kevin, do livro Precisamos falar sobre o Kevin, de Lionel Shriver. A que tipo de massacre ele foi submetido, a ponto de agir com tamanha violência?
O começo do terceiro episódio mostra a psicóloga forense chegando para fazer seu trabalho no centro de socioeducação onde Jamie está abrigado. Ela precisa descobrir o que motivou o crime e escrever um relatório independente que será lido pelo juiz. Antes de encontrar Jamie para a conversa, pede para assistir, pelas câmeras, a gravação de uma briga recente em que ele esteve envolvido. Junto com ela assistimos Jamie socando um outro garoto, no chão. Não sabemos se essa foi a primeira vez que ele arranjou briga dentro do centro, ou se desde que está detido chegou a se envolver em outras disputas.
Isoladamente, uma briga física entre dois meninos pode desencadear comentários do tipo “meninos são assim mesmo.” São colocações que saem da boca de pessoas mais velhas ou de quem não se interessa por pensar construção de gênero. Fico com a dúvida: o que é esse “assim mesmo?”.
A psicóloga está na sua quinta e última visita. Ela pega um copo de chocolate quente com marshmallows para dar a Jamie. Ou seja, ela começa o encontro com um gesto cheio de doçura. Jamie abre um sorriso. Meninos também gostam de doçura e gentileza.
Os cinco primeiros minutos de diálogo entre a psicóloga e Jamie são ternos. Eles fazem piada com o sanduíche e ela deixa que ele a chame de “patricinha”, já que ambos nasceram em locais diferentes. A descontração é uma das maneiras que a profissional tem para acessar o mundo interno de Jamie, abrindo caminho para a investigação sobre o referencial de homem que ele tem. Ela faz perguntas sobre o pai e o avô de Jamie e tenta entender o que o garoto de treze anos pensa sobre ser “um homem másculo”.
Jamie, por sua vez, quer saber o que a psicóloga pensa dele, o que ela está anotando em seus documentos. E, aqui, temos uma pista do que será revelado com mais intensidade ao final do episódio. Jamie não se acha bonito, tampouco digno de amor. A pergunta que pulsa dentro dele, mesmo que ele não tenha vocabulário para elaborá-la, é a mais humana possível: o que tenho que fazer para ser amado?
Jamie se levanta da cadeira e grita em cima da psicóloga, dizendo que ela não manda nele. Ele arremessa o copo de chocolate quente e ela sai da sala por alguns momentos. Quando volta, puxa a cadeira para perto dele. Se antes os dois estavam separados por uma mesa, agora estão a poucos centímetros. De certa forma, ela também avança em direção a ele. A escolha por essa movimentação, na cena, levanta algumas interpretações possíveis: ela se aproxima de Jamie para desarmá-lo? Para mostrar que ela não tem medo dele? Para passar a mensagem de que os gritos do garoto não vão tirá-la do seu caminho? E o seu caminho é um só: ela quer saber se ele entendeu o que fez: Jamie matou Katie.
Seus rompantes de violência e seus gritos raivosos direcionados para a psicóloga foram a maneira como Jamie aprendeu a se defender, frente às sensações de desamparo e às confusões da adolescência? Talvez sim. Principalmente se levarmos em conta o bullying sofrido na escola e os discursos misóginos que serviram de alimento para ele em uma fase em que se sentia humilhado pelas meninas.
Em um texto sobre a série para o blog da editora Boitempo, a psicanalista Cauana Mestre diz que “a ascensão da extrema direita, que dá frutos como Red Pills e tantas outras formas de misoginia, destrói qualquer possibilidade que os jovens possam ter de inventar as próprias respostas para perguntas fundamentais. Quantos mundos precisaremos destruir até entendermos que o discurso coletivo funda grande parte do nosso mundo interior e que é o discurso, sim, que fabrica o ato?.”
Quero voltar ao início deste texto. M. machucou R. contando para outras amigas da sala o segredo que ele lhe confidenciou. E, a depender dos discursos que ele irá escutar e aderir, daqui pra frente, ele poderá pensar coisas radicalmente diferentes sobre as meninas e mulheres. Levantarei duas hipóteses. 1. Talvez M. tenha errado, assim como adultos também erram. Meninos e meninas erram e M. também está aprendendo. 2. Talvez ela já demonstre a dissimulação e o mal que as mulheres levam dentro de si. São todas umas interesseiras, falsas, enganadoras - este último discurso é absurdo, mas infelizmente circula pelas redes sociais sem nenhum tipo de freio ou regulamentação.
Todos nós atribuímos sentido às experiências do mundo a partir do que o próprio mundo nos oferece como chave de leitura. A partir de referências, ideias e trocas interpessoais. Se o discurso fabrica o ato, como disse Cauana Mestre, precisamos trabalhar urgentemente na criação de novos discursos sobre a masculinidade.
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Livia, como a gente cria ou descobre ou fortalece esses novos discursos sobre a masculinidade? Estou em busca de livros, filmes, (influencers?) que eu possa apresentar ao meu filho de 13 anos. Vc tem alguma ideia? Obrigada pelo texto <3
Gostei muito da sua análise, Livia, certeira como sempre. E gostaria de acrescentar uma coisa que vem me incomodando desde que assisti a série - eu, pai de dois adolescentes, um de 14, outro que completará 13 em 15 dias -, que é o papel dos adultos nisso tudo. Porque a masculinidade tóxica existe desde que nos entendemos como seres de subjetividade, e quase todos os homens foram criados dentro dessa cultura, mas a grande maioria escapou em maior ou menor grau aos seus efeitos nocivos e a maioria absoluta jamais se transformou em assassinos ou agressores de mulheres. O que mudou? Os adultos, pais e mães, que deveriam limitar os comportamentos nocivos estão se eximindo de fazer esse papel? Isso está abrindo espaço para que o discurso coletivo domine a percepção de mundo desses adolescentes? Especialmente neste momento de recrudescimento da direita conservadora radical e amplo e descontrolado acesso ao pensamento de nossos filhos via telas e redes sociais? Eu vejo como os valores e visões de mundo do meu filho mais velho foram alterados pelo algoritmo do Instagram no último ano. E olha que nós aqui somos presentes, tentamos contrabalancear essa influência, mas simplesmente não existe essa coisa de controle parental. É impossível saber o que nossos filhos estão recebendo pelo feed nos smartphones. Você pode limitar o tempo, pode tentar evitar certos conteúdos, mas não vai ser capaz de controlar o algoritmo. Pra mim, essa é a questão mais grave da sociedade contemporânea e os barões do Vale do Silício já perceberam que em algum momento a sociedade vai se levantar contra eles. Por isso estão nessa campanha para controlar os governos que seriam o único instrumento capaz de limitar o campo de ações deles.