“E agora vejamos como a melancolia começou. Leonard estava irritadiço, desanimado e murcho. Dormimos. Acordei com uma sensação de fracasso e de ter levado uma surra. Isso persistiu, uma onda quebrando atrás da outra, o dia inteiro. Caminhamos pela margem do rio, num vento gelado, sob um céu cinzento. Nós dois concordamos que a vida sem ilusão é algo terrível. As ilusões teimavam em não voltar. No entanto retornaram por volta das 8h30, diante da lareira, e seguiram alegres até a hora de dormir, quando algumas palhaçadas encerraram o dia.”
O trecho acima é uma entrada do diário de 1915 da escritora Virginia Woolf. Fico comovida com a clareza e a honestidade da ideia impressa no papel: ela e Leonard, seu marido, concordam que a vida sem ilusão é algo terrível. Me parece difícil discordar; somos uma espécie animal que precisa dar sentido às experiências através da linguagem, e as ilusões são parte fundamental deste jogo. Virginia Woolf também deixa claro, no texto, uma tenra sabedoria: ilusões vão e vêm, desaparecem e secam só para darem as caras, de novo, algum tempo depois.
Meu filho completará 7 anos em alguns dias. A primeira infância está ficando para trás e uma nova fase o aguarda. Ele estuda em uma escola fundamentada na pedagogia Waldorf; de forma pra lá de resumida, trata-se de uma pedagogia alemã nascida no pós-guerra, de base cristã, que valoriza a formação integral do sujeito humano. Não acho que exista escola ou pedagogia perfeitas, cada família faz sua escolha a partir de seus valores e suas possibilidades materiais. Vejo alguns problemas na escola em que ele estuda, claro. Mas há um princípio que sempre apreciei muito. Na primeira infância, a pedagogia Waldorf defende que devemos cuidar das crianças mostrando a elas que o Mundo é Bom. No segundo setênio, dos 7 aos 14, o Mundo é Belo. E dos 14 aos 21 o jovem deve acreditar que o Mundo é Verdadeiro.
Dizer a plenos pulmões “O Mundo é Bom” parece uma ilusão, prima-irmã daquela citada por Virginia Woolf. Como o mundo pode ser bom quando basta estar vivo para sofrer? É só abrir os olhos com a primeira claridade do dia para ver dor por todos os lados; ler a primeira página de um jornal qualquer significa ser atropelado pelos problemas do mundo. Mas a vida sem ilusão é terrível. Impossível. Então me agarro à ideia de que o Mundo é Bom. E, abraçada a essa ilusão, começo a ter evidências ao meu redor de que, vejam só, talvez ela não seja assim tão absurda.
Com olhos atentos dá para observar a bondade, o amor e a gentileza todos os dias, por todos os lados, mas é preciso um esforço direcionado e intencional. Escrevendo este texto me lembrei de um estudo que li anos atrás sobre uma tendência um pouco trágica da nossa memória; um comportamento comum que atrapalha a manutenção das ilusões saudáveis. Não cito o estudo porque realmente esqueci a referência, mas me lembro bem da ideia central dele para explicá-la aqui. A investigação dizia que durante um dia normal de vida, você provavelmente recebe e presencia gestos de gentileza, altruísmo e bondade de muitas pessoas. O balconista da padaria abre um sorriso e diz “bom dia”, o motorista no trânsito abre passagem, amigos e familiares oferecem apoio quando você precisa. Entretanto, não serão essas as experiências que ficarão marcadas na sua memória, pelo contrário; você justamente chegará ao fim do dia lembrando da pessoa mal-educada que empurrou seu corpo no ônibus, incapaz de perceber sua existência. “Como as pessoas são grossas e egoístas” será a conclusão lógica cravada pela sua mente.
Volto ao diário de Virginia Woolf: “Meu aniversário - e deixe-me contar todas as coisas que ganhei. Leonard tinha jurado que não me daria nada, e como boa esposa acreditei. Mas ele veio sorrateiro até minha cama com um pacotinho que era uma linda bolsa verde. E trouxe o café da manhã, com um jornal que anunciava uma vitória naval (afundamos um navio de guerra alemão) (...) Portanto tive uma manhã muito feliz e agradável - que realmente só foi superada pela tarde. Fui então levada à cidade, de graça, e mimada, primeiro no cinema, depois no salão de chá Buszards. Acho que havia dez anos que eu não era mimada no meu aniversário, e a sensação era exatamente esta - pois era um lindo dia gelado, tudo animado e alegre como deve ser, mas nunca é.”
As crianças vivem alegres e animadas praticamente todos os dias. Mas os anos se acumulam, as ilusões vão se tornando rarefeitas e a imaginação infantil, tão descongestionada e maravilhosa, se atrofia. Agora adultos, deixamos a alegria escorrer pelos dedos. Acredito que um dos antídotos seja mesmo aderir à ideia de que o Mundo é Bom; praticá-lo, vivê-lo, saboreá-lo como se, de fato, ele fosse. Virginia descreveu essa ilusão de outra forma: em um dia gelado, uma xícara de chá e a companhia de quem amamos. Talvez seja um começo razoável, possível. Um bom começo.
Baguncinha de links
🍝 Esta nonna italiana ensinando receitas no Tik Tok é demais! Descobri na newsletter Galáxia, da Maria Clara Villas.
🌀 Assisti ao filme Emily, livremente inspirado na vida de Emily Brontë e gostei! Dá para alugar na Amazon Prime Video. Não espere fidelidade aos fatos biográficos, trata-se de um filme que ficcionaliza alguns eventos da vida da autora. Aliás, conhecemos pouco sobre ela, os biógrafos não tem muito material disponível. O link é uma crítica feita pela Isabela Boscov.
🎵 O gênio Ryuichi Sakamoto morreu recentemente. Ele compôs trilhas sonoras maravilhosas, como esta do filme Furyo, com atuação de David Bowie. Só dá play, é bonita demais e chama Forbidden Colours. Assisti ao filme anos atrás, honestamente não lembro muito bem da história, mas a música… fala por si só.
🎹 Nunca canso de escutar Talking Heads (amo!). Se não conhece a banda, indico esta canção para começar.
👉 Em breve darei um curso sobre os clássicos da literatura no cinema, na Roteiraria. Drácula, Coração das Trevas e Benjamin Button aparecerão por lá.
Olá Lívia! Parabéns pelo capricho da News Letter!! 👏🏼👏🏼👏🏼 🌷
Fiquei pensando sobre mostrar pra minha filha (15 anos) que o mundo é verdadeiro…
Ela está no primeiro ano do Ensino Médio. Está esgotada porque não está disposta a gastar tempo em estudo fora do horário de aula. Ela quer aproveitar a adolescência namorando, se divertindo com os amigos, consumindo conteúdos de entretenimento e alguma arte… conclusão: o rendimento na escola “tradicional” despencou… o pior de tudo é que eu não acho que ela está errada em querer aproveitar do jeito dela este momento da vida… O escola tradicional massacra com muita informação e detalhes específicos que sufocam e o organismo reage com crise de ansiedade (formigamento e tremedeira das mãos, pernas). Eu sempre acho que é uma anemia profunda… Nosso mundo aqui em casa anda uma farsa. Grande abraço 🤗 🌷
Não sei se parabenizo ou choro, fico pensando em minha filha de 6 anos e o quanto falo para ela que o mundo é bom.
E ao mesmo tempo não creio nessa ideia, mas aceito como uma visão interessante.
Agora sobre as gentilezas que esquecemos no meio do corredor do ônibus é algo que me veio a mente. O quanto gastamos de energia carimbando na mente somente os momentos tristes e esquecemos as gentilezas do mundo, das pessoas. Hoje mesmo linha filha me fez um estojo de papel e tampa de iogurte cheio de corações vermelhos.
Essa gentileza dela me comove e ler sua News me fez lembrar desse presente guardado na minha estante de estudo.
Ps: desculpe ficou grande.