O texto de hoje não é sobre um assunto sexy, glamouroso ou inventivo. É sobre lixo.
No final do ano passado visitei o perfil da influenciadora Virgínia Fonseca para checar sua decoração de Natal. Sim, Virgínia é aquela que faz publicidade de apostas online e que diz algo como “toda honra e glória a Deus” a cada conquista. Eu tinha lido em algum lugar que a decoração era exagerada e nada tinha a ver com o espírito natalino. Por que fui lá olhar? Porque me interesso por cultura pop e gosto de pensar o Brasil a partir de vários pontos de vista; um deles inclui analisar o magnetismo que certas figuras públicas e crias da internet exercem.
Não sei bem o que as pessoas em geral querem dizer com “espírito natalino”, mas, de todo modo, a decoração me chocou. Uma overdose de luzes, enfeites, árvores de natal provavelmente de plástico cobertas com bolas gigantes. Neve artificial, alces de metal pelo jardim. O vídeo postado pela influenciadora para mostrar a decoração usou imagens de drone, que capturaram com ares cinematográficos a casa toda enfeitada. Dizer que houve ostentação é eufemismo; me parece que precisamos de uma nova categoria descritiva para explicar o fenômeno Virgínia.
Me lembrei da decoração excessiva da influenciadora durante a leitura de um dos textos do livro As Cidades Invisíveis, do italiano Ítalo Calvino. O livro foi publicado em 1972 e traz descrições de inúmeras cidades imaginárias visitadas por Marco Polo. O célebre viajante narra as paisagens mais maravilhosas, insólitas e curiosas para o imperador Kublai Khan. Todas as cidades têm nomes femininos - Irene, Ercília, Eufêmia - e cada uma tem uma lógica própria.
Uma delas se chama Leônia. O texto começa assim: “A cidade de Leônia refaz a si própria todos os dias: a população acorda todas as manhãs em lençóis frescos, lava-se com sabonetes recém-tirados da embalagem, veste roupões novíssimos, extrai das mais avançadas geladeiras latas ainda intactas, escutando as últimas lengalengas do último modelo de rádio.”
Em Leônia as pessoas sentem prazer descartando os objetos para comprar novos. “A opulência de Leônia se mede pelas coisas que todos os dias são jogadas fora para dar lugar às novas”, o narrador diz. E, uma vez que as coisas são jogadas fora, ninguém mais quer pensar nelas.
Nem Virgínia nem outras influenciadoras e influenciadores que constroem sua imagem a partir da ostentação têm qualquer preocupação com o destino dos objetos, produtos e embalagens comprados e ganhados por eles. É bem provável que Virgínia faça uma nova decoração natalina em 2025, com novas luzes, adornos e enfeites. Para onde vai todo o lixo que ela produz? Essa não é uma questão que a preocupa. Honestamente, é uma questão que preocupa pouquíssimas pessoas no mundo. Ninguém quer pensar em lixo; ninguém deseja pensar nos rastros e na sujeira deixada para trás.
Marco Polo dá outros detalhes de Leônia: “ (...) quanto mais Leônia expele, mais coisas acumula; as escamas do seu passado se solidificam numa couraça impossível de se tirar; renovando-se todos os dias, a cidade conserva-se integralmente em sua única forma definitiva: a do lixo de ontem que se junta ao lixo de anteontem e de todos os dias e anos e lustros.”
Há algo na cultura do consumo desenfreado que indica nossa pulsão de morte? Sim, não é novidade que estamos caminhando para a autodestruição, mas ainda me choco com o nível de alienação de que somos capazes na era da plena informação. Em nenhum momento Virgínia pensou sobre exagero? Sobre prudência, sobre equilíbrio, sobre contenção? E não se trata de individualizar a questão; a crise climática não será solucionada se eu ou você passarmos a comprar detergente ecológico ou se a Virgínia usar poucas luzes pisca-pisca enroladas nas plantas do jardim. O que me interessa é pensar sobre nossa capacidade de negação, de infantilidade, de insanidade.
“A imundície de Leônia pouco a pouco invadiria o mundo se o imenso depósito de lixo não fosse comprimido, do lado de lá da cumeeira, por depósitos de lixo de outras cidades que também repelem para longe montanhas de detritos. Talvez o mundo inteiro, além dos confins de Leônia, seja recoberto por crateras de imundície, cada uma com uma metrópole no centro em ininterrupta erupção.”
Leônia é uma espécie de aviso, pois “quanto mais cresce em altura, maior é a ameaça de desmoronamento.” Dentro de mim há uma porção de otimismo, de coragem, de fé. Quero acreditar que estamos nos últimos suspiros de um mundo baseado na exploração insensata. Ninguém sabe o que virá no lugar, sequer sabemos se estaremos vivos para testemunhar.
A Leônia de 2025 segue invisível para muita gente, ainda. Mas para quem tem ouvidos atentos, o desmoronamento já começou.
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O desespero que me dá ver que esse tipo de influencer tem zilhões de seguidores